‘’El Mal Querer’’ — Uma obra pela reivindicação do imaginário Espanhol

For an Art Direction
5 min readFeb 29, 2020

‘’El Mal Querer’’, para além de um álbum, marca o renascimento espanhol no A1 da indústria fonográfica, o projeto lançado há pouco mais de um ano, amalgama a essência folclórica da Espanha a tópicos da vida cotidiana, com o resguardo de uma forte identidade visual e um pano de fundo já consagrado como histórico.

Rosália faz referencia a Frida Kahlo em imagem de Fillip Custic para a faixa ‘’Que No Salga La Luna (Cap. 2: Boda)’’.

Enquanto uma obra de assinatura coletiva, é necessário ressaltarmos a harmonia na criação de uma unidade. O fluido diálogo entre as áreas e os diferentes artistas que a formam é sem dúvidas a qualidade máxima de uma obra fonográfica, pois estas são as qualidades responsáveis por criar a chamada Atmosfera — um imaginário estético espaço-temporal.

“Nos vetera instauramus, nova non prodimus”

- Erasmus de Rotterdam

Em sua obra ‘’A História da Arte Como Uma Disciplina Humanística’’, Erwin Panofsky parafraseia Erasmus e cita o humanista como aquele que respeita a tradição, mas nega a autoridade. Tal conceito fora aplicado diversas vezes em estudos de arte moderna e contemporânea, e segue sendo usado como um parâmetro de validação da obra. Sem adentrar a complexidade e os vários sentidos em que pode ser aplicado, o pensamento de Panofsky trata do ato de compreender a tradição artística a que se pertence, e então a ressignificar a partir de uma nova solução/saída, e no contexto desta análise foi resgatado para demonstrar como a concepção audiovisual da obra — e apenas esta — pôde fazer de ‘’El Mal Querer’’ uma obra que inter permeia campos (artes visuais, literária e musical) gerando um denso diálogo com a tradição a que integra ao mesmo tempo que inova por trazer a esta, questões do presente momento.

Ilustração presente em reedição do romance anônimo ‘’El román de Flamenca’’, reeditado e publicado em 2019 pela UMU — Universidade de Múrcia.

Seu background criativo é formado por Rosália (artista primária, cantora, compositora), El Guincho (produtor) e Fillip Custic (direção de arte). Rosália junto a Ferrán Echegaray, concebeu o álbum enquanto uma narrativa, misturando elementos de diversas eras da cultura espanhola em ritmos e imagens, antes mesmo de compor qualquer música para o projeto.

Para dar vida ao projeto, Rosália recrutou Pablo Díaz-Reixa (El Guincho), produtor com uma forte relação de pesquisa de mestiçagem musical, conhecido entre a crítica especializada por retratar a hibridização de sua terra natal, as Ilhas Canárias, em sua sonoridade latina-afro-hispânica.

Já as imagens são creditadas ao artista hispano-croata Fillip Custic, que criou visuais que mesclam sua estética com referências a ciência, matemática e simbologia ao conceito de resgate a cultura espanhola proposto por Rosália.

‘’Os álbuns conceituais e as óperas-rock são unificados por um tema, que pode ser instrumental, compositivo, narrativo ou lírico. Deixam de ser uma coleção de canções heterogêneas para tornarem-se obras narrativas, com uma seqüência de canções individuais em torno de um tema único.’’ — Shuker, R. (1999) Key Concepts in Popular Music , Portuguese language edition, Hedra Press, São Paulo.

O produto final apresenta um álbum conceitual, tal qual definido acima pelo teórico Roy Shuker. A grandeza do álbum se edifica na ressignificação de elementos a partir da apropriação e de um amplo jogo de referenciação ao imaginário espanhol e cultura latina.

Arquivo de itens usados pelo estúdio CANADA para cenografia dos vídeos de “MALAMENTE (Cap.1: Augurio)” e ‘’PIENSO EN TU MIRÁ (Cap.3: Celos)’’.

Por exemplo, sua narrativa construída a partir do romance occitânico do século XIV, ‘’El román de Flamenca’’, traz em sua tracklist a equivalência entre as faixas do projeto e capítulos do livro, criando assim um reflexo cultural de peso em sua diegese, e também nos visuais executados por Fillip Custic, onde há uma gama de referências que se estendem das laranjas valencianas a estética de Frida Kahlo e Salvador Dalí, enquanto nos vídeos dirigidos pelo estúdio catalão, CANADA, ao mesmo tempo que se nota uma perspectiva urbana e quase editorial, também é possível identificar a influência do cinema de Pedro Almodóvar.

Imagens de storyboard feito pelo estúdio CANADA para direção de ‘’PIENSO EN TU MIRÁ (Cap.3: Celos)’’.

Musicalmente, o álbum traz ideia similar a Antropofágia de nossos modernistas brasileiros, pois assimila características externas a cultura em jogo e então, as incorpora à sua tradição — mais evidente no flamenco/trap “MALAMENTE (Cap.1: Augurio)". A disparidade entre a origem de samples presentes no projeto também é peça-chave na ambientação do disco, como em ‘’Que No Salga La Luna (Cap. 2: Boda)’’, faixa que se apropria de ‘’Bulerías’’ da histórica cantora de flamenco La Paquera de Jerez, ao passo que referência liricamente a Federico García Lorca.

Mas o ponto alto do álbum e o mais importante para a música como um panorama global é ‘’BAGDAD (Cap.7: Liturgia)’’, a faixa antecedida por ‘’PRESO (Cap.6: Clausura)’’ — uma interlude que traz um breve monólogo na voz da lendária atriz Mallorquina, Rossy de Palma — traz o sample de ‘’Cry Me A River’’ de Justin Timberlake, em um ato de ressignificação que pode ser vista, tecnicamente, como uma provocação à hegemonia norte-americana presente na indústria cultural, usando elementos dessa em uma narrativa totalmente díspar, referenciando elementos que atravessam extremos da linha do tempo da história espanhola, como o já citado ‘’El román de Flamenca’’ e a famosa boate de Barcelona que dá nome a canção, Sala Bagdad, localizada no bairro de El Raval. E por fim, estabelece uma interessante metalinguagem dentre tal perspectiva, referenciando também a capital de um país desolado pela invasão americana.

Durante sua palestra na conferência TED Talks, o renomado produtor britânico Mark Ronson defende que o Sampling é uma forma de adentrar a narrativa de uma música e levar aquela história à frente. Ronson disse em outras palavras, porém essencialmente, não diferente do que Panofsky propõe em sua noção humanista.

Still do clipe de “MALAMENTE (Cap.1: Augurio)"; Dir. CANADA.

Em ‘’El Mal Querer’’, para além de artista-primária, Rosália atuou com a visão de uma diretora cinematográfica; guiando outros artistas na delicada, porém bem sucedida missão de ilustrar em sons e imagens suas ideias, gerando o simulacro de um ambicioso conceito. O disco possui uma pletora de referências que só podem ser inteiramente desfrutadas por afins da cultura espanhola, e num paradoxo nos desperta para uma questão política-cultural ao trazer no choque com uma cultura alheia o quanto estamos calejados por hábitos e referências imagéticas americanas que na maioria das vezes nem sequer fazem parte de nosso cotidiano e/ou nunca conheceríamos sem o predomínio americano sob os meios de informação. Instaurando em seu resgate o status de reivindicação para além de sua própria tradição, mas também como um exemplo da arte enquanto resistência a qualquer tipo de soberania que ameace a identidade de um povo ou de uma cultura.

Matheus Gouthier via For An Art Direction, Fevereiro de 2020.

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