Domino Dancing — Um zeitgeist de latinidade, homoerotismo e alegorias para a AIDS

For an Art Direction
6 min readDec 1, 2019

Lançado em 1988 como single do álbum Introspective, Domino Dancing é um dos mais apurados exemplos da potência que o audiovisual fonográfico possui; a obra soma qualidades diversas em um formato que mescla diferentes técnicas de diferentes áreas. A coesão dos elementos que a compõe — conteúdo lírico, musical e imagético — e o contexto em que foi criada, conferem a Domino Dancing o status de uma obra meditativa sobre a situação do gênero audiovisual fonográfico e sua não-autonomia e entendimento enquanto linguagem, mesmo três décadas depois e em uma época que a maior parte do pensamento musical não se sustenta mais sem o auxílio visual.

Capa do single ‘’Domino Dancing’’. Neil Tennant (esq) e Chris Lowe (dir).

Musicalmente falando, Domino Dancing é um synthpop regado por influências latinas. Chris Lowe e Neil Tennant já tinham em mente a sonoridade latina quando a escreveram, mas foi Lewis A. Martinée — provavelmente inspirado pelo experimentalismo decorrente de Afrika Bambaataa — que deu vida a versão que conhecemos. Uma demo para o arranjo da canção, presente originalmente em seu single de 7 polegadas, expõe de melhor forma o pensamento latino da música — em destaque o violão dedilhado reminescente a cultura ibérica e um piano afro-cubano — antes que a mesma ganhasse os grandes sintetizadores destacados em sua versão final (escute aqui).

Já liricamente, a canção é uma visão desamparada ao surto do HIV nos anos 80. Uma forte e precisa metáfora com o chamado ‘’efeito dominó’’ — a transmissão sucessiva do vírus.

Seu clipe, dirigido por Eric Watson, em primeira análise, retrata um triângulo amoroso entre uma moça e dois rapazes, porém, somado ao teor da letra, o vídeo ganha outro significado; uma alegoria erguida através da coexistência escrita, musical e imagética, que constrói um potente discurso e um alerta entrelinhas para a juventude, a imprudência e suas consequências.

‘’(All day, all day) Watch them all fall down.

(All day, all day) Domino Dancing’’

Alguns diriam que o ponto de vista sob qual a obra se baseia, carrega os velhos estigmas que já desumanizaram pessoas soropositivas, além de denotar aspecto perverso aos portadores do HIV.

‘’Add another number to the score’’

Como em todo trabalho artístico, nossa construção sociopolítica e cultural junto a nossas preferências subjetivas, se encarrega de decidir o que gostamos ou não gostamos, o que concordamos ou não, mas é inegável que enquanto zeitgeist, a obra de 1989 cumpre seu papel com excelência, até mesmo por retratar o preconceituoso imaginário vil empregado aos portadores do vírus.

# O MUNDO QUANDO A OBRA NASCEU

Observando o contexto sociocultural da época em Domino Dancing foi lançada, podemos constatar fatores relevantes para a compreensão do boicote promovido por parte da mídia. Para isso, analisamos os dois principais mercados musicais do duo na década de 80; os Estados Unidos e o Reino Unido.

Reagan e Thatcher conversam com a imprensa na Casa Branca (Washington, D.C.), 23 de Junho de 1982.

Naquela época, o presidente americano Ronald Reagan e sua administração trataram o tema da AIDS como uma ‘’praga gay’’. A gestão conservadorista de Reagan, que ocorreu durante a época marcada pelo surgimento e o boom do vírus, ficou conhecida por seu extremo descaso com a doença.

O porta-voz do governo de Reagan, Larry Speakes, foi em diversos momentos, autor de comentários e piadas homofóbicas, além de explicitar em diversas coletivas de imprensa, ao longo dos 8 anos de mandato, o total desinteresse do governo em desenvolver políticas governamentais para o combate e controle da doença.

Já no Reino Unido, a Primeira-ministra Margaret Thatcher e seu discurso abertamente anti-gay, fomentaram o preconceito e a errônea ideia de ‘’doença homossexual’’. Thatcher se opôs às políticas com conteúdo de prevenção e combate a AIDS por temer ‘’referências sexuais’’ que parecessem nocivas à ‘’moral e bons costumes’’.

# OS SIGNOS PRESENTES NO VÍDEO

Filmado no ano de 1988 em Porto Rico, estrelando Donna Bottman, David Boira, Adalberto Martinez e os próprios Pet Shop Boys.
O vídeo possui duas versões, a versão normal (enviada aos programas de TV) e uma versão estendida, como a maioria dos clipes lançados na década de 80. Em sua versão estendida, logo no início percebemos a construção de uma narrativa simbólica não presente na versão padrão; a figura da personagem central no cemitério de Santa María Magdalena de Pazzis, aparentando luto, porém, na cena final do vídeo (imagem central), é notável o sadismo presente em sua expressão.
Adiante, temos a venda nos olhos, outra cena chave para a construção da narrativa simbólica proposta na obra. Iconologicamente, olhos vendados foram tidos como emblemas não só de cegueiras filosóficas ou espirituais, permanentes ou temporárias, mas também como símbolo de pessoas que se encontram a ponto de serem executadas.
‘’Y no hay remedio’’ da série Os Desastres da Guerra (1810–1820), de Francisco de Goya. (esq) | ‘’O Escarnio de Cristo’’ (1503–1505) de Matthias Grünewald. (dir)
Na primeira e última imagem desse frame, Chris Lowe e Neil Tennant estabelecem certa metalinguagem, pois usam o cenário da vida noturna para ambientar uma reflexão; o artista retratando sua realidade — as condições sob as quais a obra surgiu, seu destino e sua inspiração. Em análise aprofundada, pode se dizer que Chris Lowe como DJ simboliza por sua vez o entretenimento, campo qual os PSB sempre estiveram inseridos, já Neil Tennant, representa uma visão onipresente sobre toda aquela situação, como um narrador. A imagem central evoca, quase que de forma barroca, a culpa cristã. O tópico recorrente na época e imortalizado pela obra de Madonna, pode ser tido neste caso como um embate entre desejo e dogma, entre o impulso carnal e o ‘’medo da punição pela promiscuidade’’, o que muitos acreditavam ser a AIDS.
A ideia de figura fatal é reforçada pela direção de arte nesta cena, na qual a mulher de preto dança entre homens vestidos de branco. A cena enfatiza através da psicologia das cores (dualidade P&B/Yin-yang) a condição vil da protagonista, trazendo a tona o imaginário desumanizador e a perversão empregada aos portadores do vírus.
Em um dos momentos finais do vídeo, silhuetas tomam espaço numa luta sob o ensolarado sépia (imagem central). Tal cena se contrapõe a figura feminina, que a observa enquanto dois cavalos a rodeam (esq); mais adiante, ao termino da luta, os dois homens que anteriormente lutavam, cursam o trajeto inicialmente traçado pela figura feminina, e também se encontram rodeados pelos cavalos (dir). A presença dos cavalos nessa cena exerce papel fundamental — mesmo que inicialmente passe despercebida — pois um dos significados empregados ao animal na simbologia é virilidade/sexualidade e, lidando com a sugestiva tensão sexual presente na cena, os cavalos são a peça-chave para elaboração de um homoerotismo provocativo e implícito.

# REAÇÃO PÚBLICA

Em uma nota publicada posteriormente ao lançamento do vídeo, o até então crítico e comentarista da Rolling Stone, Jim Farber (NY Times, BBC, Times, The Guardian), comentou o material, destacando sua cena final em slow motion;

‘’Provavelmente é o vídeo mais homoerótico já feito, e como tal, o vídeo exemplificou a exploração mainstream do sexo gay nos anos oitenta, mais evidente nos comerciais de Calvin Klein e filmes como Top Gun. Infelizmente, Domino Dancing foi um pouco desonesto, excitando o mundo hétero com imagens que ele nunca poderia reconhecer, e então multiplicando a repressão por manter a imagem abertamente gay dentro do armário.’’

Imagens da histórica campanha de Calvin Klein com Tom Hintnaus, por Bruce Weber (1983).

O clipe foi vítima de boicotes, sua execução foi cancelada em determinados canais e consequentemente seu desempenho nas rádios não cumpriu com as expectativas, e desde então, a recepção pública ao duo nunca mais foi a mesma, especialmente nos Estados Unidos.

Visuais saturadamente latinos e literais para a turnê de 1989, concebidos em parceria com o célebre diretor Derek Jarman, famoso por sua estética hiper teatral, e coreografia da dançarina de flamenco Maribel la Manchega.

Em caráter geral, Domino Dancing traz para além de questões referentes ao campo da arte, um apurado retrato dos anos 80, amalgamado ao subjetivo do(s) artistas e perpassando a linguagem, se edificando como um registro meta linguístico criado sob as mesmas condições que retrata. Artisticamente, a identidade latina concebida a música reflete o desencadeamento de um imaginário latino na década de 80, uma perspectiva de olhar estrangeiro e exacerbada que perdura até hoje, principalmente em produções norte-americanas e britânicas. Outro ponto de destaque nesse caso, é como se configura a obra com assinatura coletiva. Quem é o autor nesse caso? Podemos inferir que apesar de todos aparatos desenvolvidos por outros artistas, os artistas primários são os compositores. Para melhor entendimento, a imagem coexiste a música quando produto final, sendo assim uma autônoma obra audiovisual, porém, tirando notas de seu processo criativo por determinado ângulo, podemos alegar que toda propriedade de imagem da obra tem como fio condutor as características latinas supracitadas presentes na música — assim sendo o objeto primário para todo seu desenvolvimento.

Em outra perspectiva, podemos pensar toda sua conjuntura enquanto o simulacro de uma ideia/sentimento/sensação, validando o trabalho na qualidade de obra essencialmente audiovisual, eliminando a perspectiva prática e linear de uma ordem produtiva capaz de definir fatores de importância, e a partir desta não-distinção, pensar o conceito de Atmosfera — um imaginário estético espaço-temporal.

Este ensaio foi escrito com o único propósito de demonstrar quão potentes e complexas podem ser as obras audiovisuais fonográficas, destacando a construção coesa, geradora de uma Atmosfera, em um trabalho de assinatura coletiva com características pulsantes de cada um dos envolvidos em sua criação. Longe do virtuosismo exacerbado e próximo das questões de nosso tempo; não descartando a cultura popular como fonte de registros históricos, mas tratando-a como uma grande ferramenta comunicativa , amparada pela mágica intersecção arte versus entretenimento.

Matheus Gouthier via For an Art Direction, 2019.

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