Alejandro — A quebra de um imaginário através do Deslocamento de Linguagem

For an Art Direction
7 min readSep 2, 2020

Parte de uma leva de artistas comprometidos em oferecer ao seu público atmosferas imersivas, Lady Gaga é detentora de uma carreira que é indiscutivelmente um dos melhores pontos de partida para podermos pensar a revolução que tornou a indústria fonográfica no que ela é hoje: essencialmente audiovisual. Dentre suas produções, referências à história da arte, ao cinema e a própria cultura pop dividem o mesmo espaço.

Muito além da estética kitsch e do camp presente em seus trabalhos, o pioneirismo da artista nos oferece também a oportunidade de meditar sobre as possibilidades técnicas para concepção da diegese de uma obra, e neste ensaio, recorremos a conjuntura audiovisual de ‘’Alejandro’’, realizado no ano de 2010, quando em análise o projeto nos permite resgatar importantes ensinamentos sobre o fazer audiovisual e a autonomia da imagem na ilustração.

# Sons quentes como o México

‘’Alejandro’’, canção de 2009 presente no álbum The Fame Monster, é um dance-pop com entoação latina, revivendo a atmosfera de clássicos como ‘’La Isla Bonita’’ de Madonna e ‘’Domino Dancing’’ do duo Pet Shop Boys. Produzida pelo sueco-marroquino RedOne, a faixa possui sample de ‘’Czardas’’ do compositor napolitano Vittorio Monti. Presente ao longo de toda a música, o fragmento da composição italiana de 1904 é — fora o nome de origem espanhola que intitula a canção — o primeiro elemento que remete a um imaginário propriamente latino.

A estrutura rítmica reminiscente a ‘’All That She Wants’’ do grupo sueco Ace of Base também não é acidental: a música lançada em 1992 é histórica por fazer parte da ruptura que marca o surgimento do interesse da indústria fonográfica norte-americana e britânica em sonoridades latinas e afro-hispânicas. O tingimento de dub-reggae presente na canção, na época algo bastante inovador, conquistou o público e também o topo das paradas no Reino Unido por três semanas, além de um saudoso pico em #2 na parada americana da Billboard.

# O choque térmico dos visuais

Anunciado como single em abril de 2010 — quase 6 meses depois de seu lançamento — , a expectativa era que ‘’Alejandro’’ acentuasse em seus visuais o mesmo calor da música, como uma ilustração verossímil do romance presente na narrativa da letra e da musicalidade latina que a embala: e Gaga fomentou essa ideia no imaginário coletivo envolto a faixa.

Cores quentes, estamparia mexicana e ‘‘No llame mi nombre, Alejandro’’ fazem parte do merch oficial do single, a venda na época.

Em 5 de Maio de 2010, o single teve sua primeira performance televisionada. Em um cenário que mescla sentimento barroco a monocromia gótica, com modelito rendado e fúnebre assinado por Giorgio Armani, a artista performou a canção em uma versão exclusiva, produzida pelo mexicano Fernando Garibay e, que conta com adição de um trecho inspirado em música afro-cubana. Como se não bastasse, o merchandising oficial do single carregava a frase ‘’No llame mi nombre, Alejandro’’. Com poucas informações sobre sua gravação e muitas expectativas para seu lançamento, o público e a própria indústria se apegou a confortável e intuitiva ideia de uma releitura ‘’latina à la Gaga’’. De uma imagem derivada da música.

Lançado em 2010, o vídeo de quase 10 minutos foi concebido por Gaga e seu até então diretor de arte, Matthew ‘’Dada’’ William, hoje diretor criativo da francesa Givenchy. A direção ficou por conta de Steven Klein, fotógrafo de moda famoso por sua estética excêntrica e sombria. O clipe teve três diferentes prévias divulgadas antes de seu lançamento, amostras perturbadoras, sendo duas delas em backwards.

O conteúdo imagético de ‘’Alejandro’’ estilhaçou o clichê de ‘’imaginário latino’’ existente na indústria fonográfica estadunidense: Um imaginário que tal qual a maioria dos norte-americanos, mistura e homogeniza diferentes costumes e culturas, não prezando pela gama de singularidades presente dentre cada variação de latinidade.

Em tom soturno, o vídeo celebra melancolicamente o amor gay, e ao usar um arsenal de referências díspares, dá vida a uma quimera: um acontecimento audiovisual híbrido, que justamente por mesclar elementos outrora heterogêneos, torna a reprodução de sua estética questionável a tributo ou cópia.

‘’Uma freira se envolve com um triângulo amoroso de soldados gays, tomada pela culpa da consumação de seus desejos e com anseio de redenção, se suicida num ato de teofagia, engolindo um rosário.’’

Para além da busca por uma narrativa, cenas como a de militares afeminados desfilando em uniformes reminiscentes a regimes totalitários, especialmente o nazismo, e a presença de signos advindos do cristianismo validam a ambição de Gaga e sua equipe em criar uma ode à cultura gay na outra ponta do espectro; longe do arco-íris e outros símbolos da cultura LGBTQ+, ‘’Alejandro’’ é uma celebração à liberdade onde ela nunca poderia existir: no dogma. A emancipação feminina e o amor gay aqui possuem ironicamente como emblemas o catolicismo e o militarismo, estruturas patriarcais e combustíveis para a homofobia, a misoginia e vários outros males oriundos do machismo.

Embora muitas vezes não sejam levados a sério, vários artistas pop usam suas plataformas veementemente para comunicar ideias políticas e levantar questionamentos a partir de produções estéticas. Tal subestimação e preconceito com a arte pop tem suas raízes no ideal aristocrático do conhecimento privado a poucos, o que contradiz por natureza a origem do termo: o popular. Por tal motivo, a leitura rasa na maioria da vezes é a primeira e única impressão que as pessoas absorvem de uma obra pop, limitando-a somente ao espetáculo, como no caso de ‘’Alejandro’’, um manifesto contra a homofóbica lei Don’t Ask Don’t Tell, que não permitia o ingresso de mulheres e homens assumidamente homossexuais nas forças armadas.

# O Deslocamento de Linguagem

Em aspectos técnicos de direção de arte, podemos chamar o recurso usado por Gaga e sua equipe de Deslocamento de Linguagem, ou seja, quando se aplica um elemento destoante em um imaginário previamente concebido por ordem estética ou narrativa histórica, gerando assim maior autonomia da linguagem artística e suas possibilidades de ressignificação.

Para melhor compreensão, seguem alguns exemplos:

A potencialização da linguagem do teatro musical ao contar a saga de Cristo em ‘’Jesus Christ Superstar’’ de 1973, onde o filho de Deus é retratado com elementos estéticos hippies, enquanto seu discípulo e traidor, Judas, ganha uma releitura funky, irradiando a opulência da era disco. O filme dirigido por Norman Jewison e gravado em Israel, mistura descrições embasadas em pesquisas históricas a elementos da contemporaneidade.

O retrato ‘’rockoco’’ (estilização de rock + rococo) da controversa rainha francesa no autointitulado ‘’Marie Antoinette’’ de Sofia Coppola. Lançado em 2006, o filme questiona através de sua plasticidade os limites entre o retrato de uma figura histórica e as possibilidades presentes no cinema enquanto linguagem. Assinada por Brian Reitzell e Roger Neill, a curadoria sonora do filme ambientado no século XVIII conta com músicas de atos da atualidade como Aphex Twin, New Order, The Strokes e The Cure.

Nenhum hibridismo no longa é em vão; desde a escolha da fonte usada em seu material gráfico até o icônico all-star na indumentária, Coppola buscou no imaginário coletivo da então atual juventude americana uma ferramenta capaz de horizontalizar perspectivas, afim de evocar a empatia do público, apresentando uma Marie Antoinette descontraida e rebelde, que poderia retratar os anseios e a imprudência de um adolescente comum.

Tais obras nos lembram que o conceito de ilustração enquanto mera embalagem, produto fidedigno e derivado de uma narrativa não é uma regra, apenas uma possibilidade. Tal qual em uma colagem com recortes de diferentes naturezas e épocas, o contraste e a inserção de elementos divergentes são capazes de gerar resultados que proclamem a unicidade do trabalho e a sensibilidade compositiva de seu(s) autor(es) ao amalgamar traços distintos na construção de uma obra. Para os estudos de direção de arte, “Alejandro” de Lady Gaga se configura como uma das principais obras artísticas da cantora. Diferente dos outros trabalhos da artista, “Alejandro” não elabora apenas uma diegese sólida, como, também, reivindica o poder da imagem ao trabalhar por meio da contraposição dos imaginários empregados a sua sonoridade e visual, questões sociopolíticas e culturais.

* Deslocamento de Linguagem; termo e aplicação designados por Thálita Motta Melo durante o curso ‘’Introdução à Direção de Arte’’ do Centro de Formação Artística e Tecnológica — CEFART, da Fundação Clóvis Salgado.

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