2000 — O Mágico e o Trágico nas dores de parto do Novo Milênio

For an Art Direction
7 min readJun 11, 2020

Na década de 90, uma inquietação tomou conta do mundo: um frenesi anunciava as dores de parto do novo milênio. Seus sintomas repercutiram em todos os cantos, e na arte não poderia ser diferente.

Nos anos finais da década, o cinema despontou produções que retratam a miscelânea de sentimentos presentes naqueles dias — o medo da tecnologia em ‘’Matrix’’, magnum opus das irmãs Wachowskis, o materialismo em ‘’American Beauty’’ de Sam Mendes, a distopia consumista presente na obra de David Fincher, ‘’Fight Club’’, e a vida numa lógica pré-concebida e acelerada tal qual em ‘’Run Lola Run’’ de Tom Tykwer.

‘’1999 foi uma sobreposição muito interessante de temor e momentos culturais impactantes. Na época, parecia um ano especial para o cinema. Havia esse sentimento enorme de empolgação misturado com uma ponta de fatalismo. Quanto mais tempo passa, mais percebemos o quanto foi especial.’’ — Brian Raftery, autor de “Best. Movie. Year. Ever: How 1999 blew up the big screen”

Já na indústria fonográfica, vários sub gêneros de eletrônica (ambient music, techno, trance e dance music) se tornaram protagonistas do aquecimento para os anos 2000. A música eletrônica — em seu aspecto volátil — evocava do desejo utópico pela comunhão entre tecnologia e espiritualidade até o anseio pelo futuro em ritmo acelerado, elementos que funcionaram como uma espécie de promessa e/ou profecia que alimentou o imaginário popular e consequentemente a estética noventista tardia.

Madonna no vídeo da faixa ‘’Ray Of Light’’ (esq) e os Pet Shop Boys em imagem promocional para o álbum Nightlife (dir).

Dentre os inúmeros atos que são frutos dessa época, destacamos aqui dois; Ray Of Light (1998) de Madonna e Nightlife (1999) dos Pet Shop Boys. Na época do domínio de vendas por mídia física, tais álbuns, lançados por veteranos da indústria, assentaram a pedra fundamental da música pop no século XXI: ela será essencialmente audiovisual.

De fato, a música já era audiovisual naquela época, mas a solidez na construção de uma diegese para um disco, do estudo Por uma Direção de Arte havia sido então finalmente estabelecido como um preceito básico para um bom álbum.

# RAY OF LIGHT (1998)

Imagem usada na capa de Ray Of Light (1998), fotografia de Mario Testino.

Com Ray Of Light, Madonna não só propôs as próximas gerações o desafio da reinvenção, como também mostrou que o risco é o maior aliado da inovação. Comparado a seus álbuns anteriores, o projeto apresentou a artista norte-americana em uma versão menos provocativa. A reflexão e a busca pela iluminação espiritual tomaram o espaço das provocações aos dogmas do cristianismo, provocações essas que tornaram A Figura Feminina envolta a Dicotomia Barroca o principal signo do seu conjunto de obra, como explica a escritora feminista Camille Paglia em sua obra ‘’Sexo, Arte e Cultura Americana’’ — ela uniu e cicatrizou as duas metades separadas: Maria, A virgem abençoada e mãe sagrada, e Maria Madalena, a prostituta — .

Ray Of Light soma algo bastante singular a estética tardia noventista; uma mistura idiossincrática que engloba menções culturais ao oriente médio, a Cabala e o misticismo sulásiatico. Enquanto fonte ocidental, seu tópico mór é a crença no humanismo renascentista: a comunhão entre Deus e a ciência, a crença no antropocentrismo como viés de mudanças.

A atmosfera naturalista, americanizada, desnuda e crua, como eternizadas nas imagens da fotógrafa e documentarista Corinne Day, são características nítidas do estilo tardio noventista, como também a fixação com questões temporais e lisérgicas, que refletiram diretamente nos visuais da época.

O photoshoot do álbum ficou a cargo do fotógrafo peruano Mario Testino, que acompanhou Madonna nas gravações e após um dia exaustivo de longas horas fazendo música, capturou a imagem usada na capa.

Para os 5 singles do álbum, Madonna recrutou uma equipe de diretores com tendências experimentalistas; Chris Cunningham, que trabalhou com Aphex Twin e Björk assinou a direção do vídeo de ‘’Frozen’’. Walter Stern, idealizador dos vídeos de ‘’Bittersweet Symphony’’ e ‘’Angel’’, que mais tarde se tornaram marcos para a estética noventista, dirigiu o vídeo da faixa “Drowned World/Substitute for Love”. O sueco Jonas Åkerlund assina a direção do vídeo para a faixa homônima ao álbum, que engloba elementos de Koyaanisqatsi, longa experimental da trilogia Qatsi de Godfrey Reggio e Philip Glass.

Imagens de Koyaanisqatsi (1982), colaboração de Godfrey Reggio e Philip Glass.

Enquanto faixa título, ‘’Ray Of Light’’ desempenha bem a função de sintetizar o espírito do projeto, a produção de William Orbit mescla techno e guitarras acústicas em um arranjo que não contrapõe a identidade visual que espiritualiza a urbe, revelando harmonia em elementos que outrora foram apresentados como opostos.

# NIGHTLIFE (1999)

‘’Os anos 90 foram uma década de naturalismo — que é realmente apenas outro estilo. Eu nunca quis ser como um Kurt Cobain, não concordo com isso. Quando criança, eu me lembro de assistir The Supremes no Top of The Pops quando eu era muito jovem, e eu simplesmente não podia imaginar que elas eram seres humanos! Nós queremos ser assim. Maior do que a vida.’’ — Neil Tennant

Um romance lúgubre recheado de reflexões existencialistas, eis Nightlife, o sétimo álbum de estúdio do Pet Shop Boys. Lançado às vésperas do novo milênio, o disco tem como base a vida noturna e se apropria de visuais industriais e referências ao neo-futurismo para traduzir sentimentos de um mundo distópico.

Imagem usada na capa de Nightlife (1999), fotografia de Alexei Hay.

O álbum que musicalmente mescla trance a outros gêneros, é em termos audiovisuais o projeto mais sólido da dupla. Os figurinos híbridos combinam a rebeldia ocidental do punk à teatralidade fatídica do Kabuki, fato explicitado pelo próprio duo como um afastamento intencional ao naturalismo noventista.

Sci-fi e transhumanismo embalam o vídeo do lead single “I Don’t Know What You Want but I Can’t Give It Any More’’ dirigido por Pedro Romhanyi. O clipe que serve como um convite a diegese do projeto também faz alusão a ‘’2000: A Space Oddity’’ e ‘’Orange Clockwork’’, clássicos de Stanley Kubrick.

Still da cena final de ‘’2000: A Space Oddity’’ (1968) de Stanley Kubrick (imagem centralizada), referência para o clipe de 1999 do Pet Shop Boys (esq/dir).

‘’New York City Boy’’ é o segundo vídeo lançado para a divulgação do álbum. Dirigido por Howard Greenhalgh e simplório quanto a referenciação, o clipe é o que mais se aproxima da estética noventista genérica e ainda que sem um grande esquema de referências visuais, promove uma curiosa fusão indumentária de ‘’Orange Clockwork’’ à la Gilbert and George e Roy Lichtenstein. Anos mais tarde, o estilo de narrativa da obra serviria de inspiração para o vídeo do sucesso mundial ‘’Love Generation’’ de Bob Sinclair.

O derradeiro single do álbum, ‘’You Only Tell Me You Love Me When You’re Drunk’’ ganhou vida pelas lentes do supracitado Pedro Romhanyi. O clipe da balada uptempo remonta a vida noturna em estética P&B.

‘’Nós afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade.’’ — Filippo Tommaso Marinetti

A capa do álbum faz referência ao artista italiano Anton Giulio Bragaglia, pioneiro da fotografia futurista. O dinamismo nas fotos de Bragaglia é fruto dos preceitos estéticos de Filippo Tommaso Marinetti, que embriagou gerações de criadores com a agressividade dos versos do Manifesto Futurista. Versos inundados pela devoção à velocidade.

‘’Salutando’’ de Anton Giulio Bragaglia, 1911.

Nightlife também se diferencia por ser um álbum a contar com a ilustre presença de Zaha Hadid, renomada arquiteta desconstrutivista. Ao lado do cenógrafo Ian Macneil, Hadid planejou o palco para a turnê mundial do duo.

‘’…Chamamos de desconstrutivistas aqueles projetos que tem a capacidade de desestabilizar a nossa maneira de perceber o mundo.’’ — Phillip Johnson e Mark Wigley, trecho do catalogo ‘’Deconstructivist architecture’’ publicado pelo MoMA.

Era de extremo interesse para Neil Tennant e Chris Lowe — os Pet Shop Boys — que Nightlife se destoasse de tudo lançado naquela época. Eles buscavam visuais maiores que a vida corriqueira, visuais que pudessem prever o fatídico rumo ao qual a humanidade estaria destinada e para isso, seria preciso criar interseções que potencializassem a diegese do projeto: soluções visuais completas que abrangessem design, moda, artes visuais e arquitetura.

Palco da Nightlife Tour, design assinado por Zaha Hadid.

Cercá-lo de informações por todos os lados solidificou sua atmosfera distópica no imaginário da cultura popular. Aquele novo mundo havia sido criado de maneira tão detalhada que dispensava cuidados faixa-a-faixa, pois seu conteúdo com descrição tolkieniana, propicia uma experiência imersiva tal qual a de um livro cuja base se amalgama ao subjetivo do leitor, permitindo-o ter uma visão própria daquele universo em todos seus aspectos.

Enquanto um retrato da ânsia pré-2000, Nightlife vai no caminho contrário das boas expectativas: industrial, soturno e niilista, como poderiamos pensar o agouro realizado pelo canto da ave mecânica em ‘’October’’, longa de Serguei Eisenstein. No outro extremo do espectro, Ray Of Light e sua espontaneidade inundada por tom místico, anuncia com vigor um futuro harmônico, onde a comunhão entre valores humanos, natureza e tecnologia se fazem presentes.

Ezra Pound certa vez definiu o artista em seu ofício como ‘’A Antena de seu Tempo’’, talvez seja essa a principal função do artista para os registros históricos: retratar os anseios do mundo que o rodeia, formar zeigeists de luz ou trevas, garantir que a história seja também contada pela visão do criador.

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